O trivial representa 90% dos problemas de saúde

2 de outubro de 2020

O trivial representa 90% dos problemas de saúde

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A discussão de política públicas com a ajuda da iniciativa privada pode ser uma forma de melhorar o sistema de saúde no país.

Todos os dias, por pelo menos uma hora, o oftalmologista Claudio Lottenberg faz uma caminhada. Como médico, sabe da importância da atividade física para a manutenção do bem-estar físico e mental. Como especialista em gestão da saúde, afiança que 90% dos problemas que levam as pessoas a consultas ou a emergências estão associados ao que chamou de trivial. Pode-se entender isso como medidas básicas como fazer exercícios, alimentar-se de forma equilibrada e respeitar o sono.

Durante 15 anos, Lottenberg dirigiu uma das instituições mais reconhecidas do país, o Hospital Albert Einstein (entre 2001 e 2016). Hoje, preside o Instituto Coalizão Saúde (Icos), criado em 2014 e que reúne setores privados, como hospitais, planos de saúde, produtores de insumos e a indústria farmacêutica. Ele assumiu esse papel, entre outros motivos, para debater como enfrentar uma das principais falhas que enxerga na saúde, o mau uso dos recursos.

No mundo, a sociedade tem cobrado mais ações da iniciativa privada em prol de uma vida melhor. Na área da saúde, isso também ocorre, com as instituições particulares sendo mais acionadas para a qualificação do capital humano, conta Lottenberg. Mas ele defende que as discussões de políticas públicas não se restrinjam à esfera governamental. Bons programas poderiam sair da atuação convergente do setor privado e do público.

No entender de Lottenberg, o atual foco da saúde teria de ser abandonado, saindo do tratamento para a prevenção. Para isso, é essencial redefinir o protagonismo das ações.
Quem deve estar no centro de tudo é o cidadão, que deve ser mais informado sobre seu papel central no cuidado da saúde. Com o maior engajamento da população – via trabalhos de conscientização –, a iniciativa privada poderia ter um peso maior na prevenção. Hoje, até mesmo as entidades representativas têm menos protagonismo do que o setor público, ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos.

Pergunta – Qual a missão do Instituto?

Claudio Lottenberg – O Instituto Coalizão Saúde é uma organização não governamental que visa integrar todos os atores responsáveis pela cadeia coletiva de saúde. São produtores de insumo, indústria farmacêutica, prestadores de serviços, hospitais, laboratórios, operadoras de saúde. O Instituto se espelha em um recurso de capital humano de quase 5,5 milhões de pessoas e que hoje representa 9,4% do Produto Interno Bruto. O fato é que essas estruturas nem sempre conseguem enxergar pontos de convergência.

 P– Ele surgiu de que forma? Ou seja, o senhor presidiu o Einstein durante 15 anos e há algum tempo vem discutindo gestão de saúde de um modo geral. Foi um pouco fruto dessa experiência ou mais por uma demanda que o senhor vinha sentindo que havia no país?

Lottenberg – Um pouco das duas coisas. Em primeiro lugar, porque acho que um dos pontos principais para que a gente possa ter uma saúde com acesso é minimizar o abuso na utilização de recursos. Esse combate ao desperdício tem sido uma das falhas, dentro da perspectiva de alguém que enxerga a saúde como direito social. Em segundo lugar, porque achei que esses atores precisavam de um fórum em que eles pudessem, independentemente de questões mais intrassetoriais, encontrar um espaço para buscar oportunidade de sinergia. Essas coisas se convergiram e resultaram justamente no Instituto Coalizão Saúde.

 P – De que forma se conectar com a saúde pública de maneira mais concreta?
As esferas públicas permitem um diálogo mais fluido?

Lottenberg – A divisão de público e privado se dá somente pela origem do financiamento. Muitos privados se abastecem do público e o público também se alimenta do privado. A conectividade, portanto, entre essas partes é imediata e nata à própria natureza da atividade. Discussão de gestão já acontece. Se a gente olhar, cerca de 60% dos leitos hospitalares da esfera pública hoje são de leitos privados. A indústria atende tanto o setor do financiamento público quanto o do financiamento privado.
Então, são coisas que sempre se conversaram. A divisão acontece só no fundo de origem do financiamento. Para a área privada, existe financiamento à parte, que é a saúde suplementar. E na parte pública, existe financiamento do SUS que se origina dos tributos gerais.

P – Há uma série de problemas que não estão sob controle, apesar de esforços feitos por campanhas públicas, como epidemia do diabetes e epidemia de obesidade. Os esforços públicos parecem não encontrar eco na população. A iniciativa privada pode, de algum modo, dar uma sacudida, nesse sentido, para melhorar esses números?

Lottenberg – Tenho certeza de que sim, na medida em que ocorram entendimentos do que é uma política pública. Ela não é uma política que nasce de uma movimentação, de uma articulação, de uma discussão só do poder público. Ela nasce da convergência dos entes privados com os públicos. É de um trabalho conjunto dessas duas frentes que nascem as políticas públicas. No caso da saúde, ela é um direito social consagrado pela Constituição. Lá está dito que é um dever do Estado e um direito do cidadão. É como se ocorresse uma terceirização. É uma responsabilidade de todos, menos do próprio paciente. Há um movimento crescente para que cada vez mais o paciente se engaje nisso. Ocorrendo esse engajamento, o setor privado vai assumir papéis cada vez maiores de protagonismo.

P – Existem exemplos de como as entidades privadas contribuem para melhorar os índices de saúde?

Lottenberg – Sim. Na parte de hipertensão, por exemplo, a American Heart Association tem um papel de protagonismo muito maior do que o Ministério da Saúde americano. Nas questões de controle de colesterol e diabetes, as entidades de representatividade médica têm um papel muito mais presente do que acontece no Brasil. No Brasil, isso ainda engatinha. Talvez até porque, no Brasil, o aparecimento do SUS tenha sido em fase mais recente, de certa forma (o sistema foi definido na Constituição de 1988 e formalizado em 1990). Mas há inúmeros exemplos internacionais de mobilidade por parte da iniciativa privada que ocupam protagonismo em ações que não têm de necessariamente nascer da esfera pública. No campo da execução, a iniciativa privada tem sido convocada também na saúde para trazer respostas mais ágeis, mais eficientes, sobretudo na qualificação do capital humano.

P – Como isso poderia ser feito em curto, médio e longo prazos? Para a iniciativa privada se juntar aos esforços públicos para melhorar esses índices, o que é preciso delinear? É possível?

Lottenberg – A primeira coisa é desmistificar a ideia de que existem dois sistemas. Nós temos um sistema único com financiamento duplo (público e privado), isso sim. Em segundo lugar, é preciso colocar o paciente como o ator principal, como o protagonista preocupado com a sua saúde. O terceiro ponto é largar o conceito de saúde que hoje é entendido ainda muito sob o plano do tratamento e muito pouco pela ótica da prevenção, que pode incluir interfaces como cidades sustentáveis e conceitos de alimentação. Quarto ponto, rediscutir todo o processo de remuneração dos processos da assistência., que hoje são muito mais premiados pelo uso do que pelo cuidado. Muito mais pelo desperdício do que pela eficiência. Muito mais pela incompetência do que pela competência. Todos esses pontos são prioridades. Mas acho que o principal seria a conscientização das pessoas a respeito de seu protagonismo no cuidado. Elas não têm conscientização o suficiente hoje e terceirizaram seus problemas de saúde para os médicos e para o Estado.

P – Isso se agrava mais em uma determinada área da saúde? Quero dizer, se agrava mais em relação a doenças não transmissíveis, a doenças que cronificam?

Lottenberg – Acho que isso se manifesta de maneira muito mais importante naquilo que é mais trivial. Porque o trivial representa 90% dos problemas de saúde. Veja, por exemplo, o diabetes. Se existisse um bom programa de controle da obesidade, possivelmente o país ganharia muito em termos de qualidade de saúde. Se existisse um bom programa de alimentação, muito possivelmente o país ganharia muito em índices relacionados a doenças cardiovasculares e neurológicas. E ganharia muito também na questão da obesidade. A gente muitas vezes fica em discussões sobre altas tecnologias, que não é a questão mais representativa. O mais importante é a baixa complexidade, justamente. Acredita-se que o cuidado com a atenção primária (primeiro nível do atendimento, caracterizado pela promoção da saúde e pela prevenção) é resolutiva em até 90% das vezes com uma única consulta.

P – Nesse sentido, parte dessas questões deveria passar pela escola?

Lottenberg – Sim. É algo muito mais de natureza educativa do que de tratamento. Muito mais de orientação que cuidado. Inserir isso como disciplina constante na grade da escola fundamental seria uma ótima proposta.

P – Já que 90% das questões da saúde estão mais ligadas ao trivial e, pensando no perfil do brasileiro, o senhor considera que ele não liga para a saúde ou liga, mas é pouco informado?

Lottenberg – Ele é um cidadão pouco informado a respeito das medidas essenciais, mas ele liga para a saúde, tanto que, nos períodos eleitorais, é o ponto mais apontado como queixa por parte da sociedade.

P – Sobre cuidados básicos, o sedentarismo pode ser apontado como um dos principais males da saúde do brasileiro?

Lottenberg – Sem a menor dúvida. Muito do que nós temos são questões relacionadas a hábitos de vida. Então, várias das doenças estão relacionadas ao sedentarismo. Doenças cardiovasculares, diabetes, o próprio câncer. Quando você tem atividades físicas de maneira orientada, caminha para aquilo que se chama de envelhecimento ativo. Essa talvez seja uma das melhores maneiras de trabalhar contra doenças.

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